sábado, 17 de abril de 2010

FUGINDO DA GUERRA

Trecho do romance "Jaime, o marinheiro"

A HISTÓRIA DE ALEXANDER
(Fugindo da guerra)









Essa me aconteceu na academia da tripulação, no Brilliance of the seas. Nós músicos, podemos utilizar a academia dos passageiros, mas as vezes ela está muito cheia, os aparelhos ocupados, e como o passageiro tem sempre a preferência, é mais conveniente utilizar a academia da tripulação, que é muito menor e mais simples, mas dá pro gasto. Era tarde da noite, eu estava sem sono e resolvi ir caminhar na esteira para matar o tempo e ver se o sono chegava. Lá pras duas da manhã, me aparece o faxineiro. Seu nome era Alexander, um sujeito com cara de maluco, branco, muito magro, os olhos grandes e negros, que eu sempre via pelos corredores, cabisbaixo, a fisionomia triste, sem falar com ninguém, fazendo o seu trabalho de limpeza. Às vezes nos entreolhávamos e nos cumprimentávamos com um leve aceno de cabeça, mas não dizíamos nada. Às duas da manhã não tinha ninguém na academia além de mim. Ele entrou, me cumprimentou com a cabeça e eu continuei caminhando na esteira. De vez em quando eu o observava através do espelho, e ele estava lá, em pé, olhando fixo para mim, com a vassoura na mão. Aí eu perguntei se eu estava atrapalhando, se eu tinha que sair para ele fazer o trabalho dele. Ele disse que não, que estava ali matando o tempo, que ele não tinha nada o que fazer e que tinha ido pra academia para se esconder dos supervisores.
Os supervisores de limpeza, são em sua grande maioria, ex-faxineiros, quase todos caribenhos, quase todos sem instrução, quase todos sem educação nenhuma, que para se vingar de como foram tratados quando eram faxineiros, perseguem, espezinham e maltratam os seus subalternos, dando ordem aos gritos, como se estivessem falando com animais. Como já expliquei antes, a Companhia tem contratado um grande número de tripulantes oriundos do leste europeu e muitos são faxineiros e brancos. Os supervisores são em grande parte, negros e se aproveitam para se vingar em dobro. O Alexander prosseguiu.
- Eu sempre vejo o senhor por aí sem fazer nada, o senhor é oficial?
Eu respondi que não, que era músico e perguntei o nome dele e de que país ele vinha. Ele respondeu, com um forte sotaque eslavo, o inglês vacilante, que vinha da Macedônia, mas era natural do kosovo, depois me perguntou por que eu estava sempre sozinho. Eu disse que é porque eu gostava de sossego, que era melhor estar só do que andar metido em fofoca e em confusão. Aí ele perguntou se ele estava atrapalhando o meu exercício, se eu queria que ele fosse embora. Eu percebendo no que aquilo ia dar, mandei o meu clássico, “que nada, pode falar que eu estou escutando”. Ele perguntou se eu tinha família. Eu disse que sim, que estava separado, mas que tinha irmãos, sobrinhos, uma família grande no Brasil.
- Brasil?! Deve ser um lugar bonito lá. Eu já vi muitas fotos do Brasil na televisão. Tem guerra no Brasil?
Eu respondi que não, que o país era muito grande e rico, mas que tinha muita gente pobre também, pois o pior problema do Brasil eram os políticos, que viviam roubando o dinheiro do povo. Ele disse que era assim em todo lugar, mas que se não tinha guerra, já era bom demais e começou a contar a sua história.
- Eu perdi toda a minha família na guerra, estou aqui fugido, porque perdi tudo, não tenho nada, nem casa. Minha mulher, minha filha, minha mãe e meus irmãos, todos morreram na guerra, assassinados pelos sérvios.
Nesse momento eu desliguei a esteira e sentei num banco que estava por perto e pedi que ele sentasse também. Ele continuou de pé.
- Minha mãe nasceu na Macedônia e o meu pai na Albânia, depois que eles casaram foram viver no Kosovo. Já ouviu falar no Kosovo?
Eu disse que sim, que era professor de história em meu país e que conhecia bem de história e de geografia também. Ele continuou.
- Os sérvios quiseram fazer uma limpeza de raça no Kosovo, que era de maioria albanesa e queria se tornar independente. Aí então eles nos invadiram. Somos um país pequeno, não tínhamos um exército forte e bem treinado, mas somos bons de briga e nos organizamos em milícias para resistir como podíamos, nas montanhas. Eles eram em maior número, e tinham melhores armas, mas mesmo assim não nos venceram, os americanos nos ajudaram e não perdemos a guerra, mas já era tarde, eu perdi tudo, casa, família, mulher, filha, tudo. Como minha mãe era da Macedônia eu fugi pra lá, porque o meu país estava destruído.
- Eu sei, eu acompanhei pelos jornais e pela televisão.
- Mas garanto que o senhor não conhece as atrocidades que os sérvios fizeram no nosso país, por que isso a televisão não mostra. Eles estupravam as nossas mulheres e depois matavam. As crianças e recém nascidos, eram colocados vivos em fornos micro ondas, e os adolescentes, tinham as suas barrigas cortadas, e eram deixados assim, sangrando, com as tripas de fora, até morrer. Saquearam tudo, incendiaram nossas casas, destruíram nossas plantações, acabaram com o que puderam. Não só o Kosovo como também a Bósnia e a Croácia, mas eles se foderam, os malditos não conseguiram ganhar de ninguém, ficaram só com um pedacinho de terra e com Montenegro, que logo logo vai se separar também. Eu matei vários, não sabia nem pegar numa arma quando eu fui pra milícia, hoje eu sou um bom atirador, matei tantos sérvios que até perdi a conta. Mas agora acabou, tenho que tentar seguir vivendo e reconstruir a minha vida, por isso eu vim trabalhar nos navios. Se eles soubessem que eu tenho tantas mortes nas costas não me contratariam.
-Mas agora acabou Alexander, você é jovem e pode encontrar outra mulher, até aqui mesmo no navio, quem sabe casar, ter outros filhos. O que é que você fazia antes da guerra?
- Eu trabalhava no campo, não tenho muita instrução não, sou camponês.
- E onde foi que você aprendeu inglês?
Perguntei, tentando desviar o assunto. Ele me disse que aprendeu com os americanos, escutando, vendo televisão, perguntando, lendo revistas. Que quando ele foi fazer a entrevista para trabalhar nos navios, comprou um dicionário e foi se virando e que por isso ele só pode trabalhar na faxina, por que o seu inglês ainda não é bom e ele não tem muito estudo. Eu o elogiei dizendo que pra quem não tinha tido um professor, que ele falava muito bem, que ele tinha um bom vocabulário e sabia se expressar, e acrescentei.
-Também, se a sua mãe era natural da Macedônia, você é de uma certa maneira, é um descendente de Alexandre, O grande. Por isso é um cara inteligente e guerreiro. Não é a toa que você tem esse nome. Daqui pra frente sua vida vai mudar Alexander, você vai ver.
Foi quando eu vi Alexander sorrir pela primeira vez. Seu rosto se iluminou com algo parecido com esperança. Sorrindo, com quase todos os dentes estragados, ele me agradeceu e pediu segredo, pediu que eu não contasse pra ninguém a sua história, senão eles podiam despedi-lo e ele não tinha para onde ir. Nos navios pelo menos, ele tinha casa, comida, e era pago pelo seu trabalho. Comparando com o seu passado recente. Podia-se dizer que Alexander, tinha ali, no Brilliance of the seas, uma vida digna.
Fiquei amigo dele. Sempre que eu podia, ia comer a gororoba que serviam no refeitório da tripulação, só para conversar com Alexander, a quem passei a chamar de “Alexander, the great”. Eu escutava as suas histórias fantasiosas e perturbadas pelo horror da guerra, e procurava incentivá-lo a recuperar a sua vida. E também contava as minhas e as do meu país, que apesar de ser um país pacífico, nas nossas favelas e no nordeste do Brasil, acontecem coisas que não são muito diferentes das que aconteceram no Kosovo, durante a sua guerra contra os sérvios.














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