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domingo, 8 de fevereiro de 2015

O PSICOPATA

Eles são inteligentes, sedutores e mentirosos compulsivos. Estão em toda parte, no trabalho, na escola, ocupando altos cargos no governo, podem estar inclusive agora, ao seu lado, na sua cama... 

Por Ricco Duarte
O PSICOPATA

FUI FEITO PARA MATAR O AMOR
PARA NÃO ACOMPANHAR NINGUÉM
E VIVER SEM MEDO.
PROGRAMADO PARA VIVER SEM DOR
PARA NÃO SENTIR PENA OU REMORSO
QUANDO EU PISO
O CHÃO ESQUENTA
RACHA, SE CONTORCE
E GRITA EM DESESPÊRO.

FUI FEITO PARA NÃO DEIXAR RASTRO
PARA NÃO DERRAMAR LÁGRIMA
E DESORDENAR O MUNDO.
INVENTADO AO ACASO
SEM AFETO
ABRAÇO OU BEIJO
POR ONDE EU PASSO
A TERRA CHORA
UM CHORO PROFUNDO.

ESTRANHA A FORMA COMO FUI FEITO
VIM PARA BATER PRIMEIRO
E DEPOIS PERGUNTAR
VIM PARA TIRAR A RAZÃO
E NÃO SABER PERDOAR
VIM PARA PARTIR AO MEIO
RETIRAR A DIREÇÃO
ARRANCAR O CORAÇÃO
E TE DEIXAR MAIS FEIO.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

QUANDO A ALMA É MESQUINHA...

Todos nós, seres humanos, independentes de credo, etnia ou condição sexual, somos semelhantes em muitos aspectos. Cometemos erros, acertamos algumas vezes, amamos, odiamos, somos capazes de grandes feitos e também de fazer coisas detestáveis. Porém, tudo o que somos e o que fazemos, podemos melhorar ainda mais, mas quando a alma é mesquinha… aí não tem doutor que dê jeito. A mesquinhez é obscura, pequena, barata, sem conserto. Dela surge o traidor, o corrupto, o bandido, o psicopata, o que não tem remorso, o que sorri para você e lhe apunhala pelas costas, o que fala mal dos outros para você e mal de você para os outros. O falso, o medroso, o inseguro, o mentiroso e o invejoso, estão todos condensados em uma só alma. A mesquinharia é pútrida, fedorenta, sem alegria. Nela, os dias são nublados e as noites sem estrelas, pois quando a alma é mesquinha, o sol não brilha e dentro dela, a escuridão impera. 

sexta-feira, 16 de abril de 2010

O CANTOR GOSPEL

Trecho do romance "Jaime, o marinheiro"

A HISTÓRIA DO MARTIN
(O cantor gospel)





Martin era um auxiliar de escritório natural da Guiana, ex colônia britânica e único país da America do sul cuja língua oficial é o inglês. Seus antepassados eram indianos e imigraram para a America para tentar uma vida melhor no novo continente. Nos conhecemos no Serenade, quando ainda estávamos no estaleiro e o navio não havia sido inaugurado oficialmente. Ele era um rapaz bonito, amigável, conversador e de boa instrução, tinha uns vinte e poucos anos e havia deixado duas filhas pequenas e a sua mulher grávida, em Georgetown, capital da Guiana. De vez em quando almoçávamos juntos no refeitório e ele me contava um pouco dos seus sonhos, que queria ser cantor, mas a vida dura que levava no seu país o obrigou a deletar este plano, logo depois que ele casou e constituiu família, então passou a cantar apenas na igreja, aos domingos. Martin era cristão convicto, falava muito em Deus e fazia constantemente citações da bíblia. Uma vez ele me mostrou uma foto de sua família, numa festa da igreja, ele, a mulher e as duas filhas pequenas. Uma família bonita e aparentemente feliz. Ele também aparentava ser uma pessoa feliz e tranqüila, com grande força de espírito, um cara lutador, que estava sempre fazendo trabalhos extras, para juntar mais dinheiro e sustentar a sua família, que logo iria ganhar mais um membro. Quando sua terceira filha nasceu, eu fui o primeiro saber. Comemoramos juntos, bebendo vinho no bar da tripulação até altas horas, conversando trivialidades, dando risada, celebrando o futuro daquela nova criança. Naquela noite eu sugeri que ele tirasse uma licença não renumerada de quinze dias, e fosse conhecer sua filha caçula, já que ainda faltavam seis meses para o contrato dele terminar. Ele disse que não, que uma passagem para a Guiana, custava muito dinheiro e que seis meses passavam rápido, o que eu entendi perfeitamente. O contrato do Martin era de oito meses e ele estava pensando em estender por mais dois meses. Dez meses no mar, dentro de um navio, trabalhando de sol a sol, bem, no caso de um navio, poderíamos dizer, trabalhando de lua a lua, que dá no mesmo.
Às vezes eu o convidava para sair e ele nunca aceitava pois estava sempre ocupado, fazendo hora extra, mesmo quando ainda estávamos no estaleiro, na Holanda, com Amsterdã a nossos pés, ele nunca saía do navio. Um dia eu perguntei se era a primeira vez que ele havia saído da Guiana, e ele respondeu que sim. Então lhe perguntei se ele tinha vindo trabalhar nos navios para ver o mundo como a maioria das pessoas, e ele disse que não, que tinha vindo trabalhar nos navios para fazer dinheiro para sua família, e que por isso não lhe interessava sair nos portos, que ele queria economizar para o futuro. Um caso comum na vida dos navios, trabalhar e fazer dinheiro, o que não era comum, era o fato de alguém nunca sair em nenhum porto, nem para respirar um ar diferente, ver outra paisagem, isso eu nunca tinha visto. Eu admirava muito a força de vontade daquele rapaz. O meu primeiro contrato terminou, eu fui de férias e quando voltei, seis semanas depois, o Martin ainda estava lá, no mesmo ritmo.
Sempre que ele podia, ele passava rapidamente pelos lugares onde eu estava tocando e ficava por alguns minutos escutando a música. De vez em quando também, ele aparecia no teatro no meio da tarde, quando eu estava treinando e numa daquelas tardes, ele me pediu para eu acompanhá-lo no show de talentos da tripulação, que iria acontecer dali a duas semanas. Eu aceitei com prazer e ensaiamos a canção que ele escolheu, uma balada gospel. Martin tinha uma voz bonita, afinada e na noite do show de talentos, ele ganhou disparado dos outros concorrentes. Eu fiquei impressionado com a força da sua interpretação, cheia de paixão e fé. Na hora da verdade ele cantou diferente dos ensaios, como um profissional, com belíssimos fraseados de jazz, como os negros norte americanos. Quando ele terminou, foi demoradamente aplaudido de pé, inclusive pela imensa torcida adversária, que era claro, a torcida filipina. Eu me vi diante de um dos maiores cantores que eu já havia escutado e sugeri que ele largasse aquela vida no mar e emigrasse para os Estados Unidos, pois ele poderia, com persistência, força de vontade e um pouco de sorte também, ficar rico em pouco tempo, cantando. Ele me respondeu que só cantava para louvar ao Senhor e que não pensava mais em fazer carreira, que isso era coisa do passado. Mesmo assim sempre que o encontrava eu o chamava de “meu cantor.”
Duas semanas depois do show de talentos, ele me apareceu no teatro, no meio da tarde. Sua fisionomia estava diferente, angustiada, parecia inclusive que ele tinha chorado, seus olhos estavam vermelhos. Assim que o vi, pude perceber que havia algo de errado com ele, então sorri e fiz um sinal com a cabeça para que ele se aproximasse e perguntei:
- Como vai o meu cantor predileto, o que vamos cantar hoje?
Ele respondeu que naquela tarde ele só queria escutar um pouco de música, que precisava mais do que nunca relaxar, e ficou de pé, ao lado do piano, o olhar fixo, distante, os olhos marejados. Eu percebi que ele precisava desabafar algo, então diminuí o andamento da música que eu estava tocando, que por coincidência era “you’ve got a friend,” do James Taylor e disse baixinho, que ele podia falar que eu estava escutando. Depois de um breve tempo em silencio, Martin começou a sua história.
- Você acha que existe crime perfeito?
Eu respondi que dependia do crime, mas que a maioria sempre acabava sendo descoberto, mais cedo ou mais tarde e perguntei por que ele tinha feito aquela pergunta. Ele não respondeu e depois de outra breve pausa prosseguiu.
- Sabe por que durante todo este tempo que eu estou aqui, eu nunca saí do navio?
Eu respondi que não com a cabeça e ele continuou, falando baixo e devagar.
- Eu estou aqui fugindo dos crimes que eu cometi. Eu resolvi fugir para o mar, para me auto punir, me aprisionei por vontade própria, pois eu não podia mais olhar nos olhos da minha família.
Eu perguntei o que aconteceu e fiquei dedilhando uma melodia aleatória, bem lenta, e ele continuou, desta vez sem interrupção.
- Eu já estava casado há quatro anos quando conheci um outro rapaz, também casado, mas que não tinha filhos e que trabalhava perto do escritório onde eu trabalhava, no centro da cidade. Sempre nos encontrávamos na saída do trabalho, no final da tarde, e começamos a sair. No principio era só amizade, saíamos para tomar cerveja e conversar, falar do futuro, das nossas famílias, essas coisas. Um dia aconteceu, fizemos sexo, uma, duas, três vezes, e nos apaixonamos. Ele largou a mulher dele e alugou uma casa no subúrbio de Georgetown, onde tínhamos os nossos encontros secretos. Minha mulher pensava que eu tinha outra mulher, pois eu chegava sempre tarde em casa e às vezes dormia fora, na casa dele, com a desculpa de que estava fazendo hora extra no emprego. Ele começou a me pressionar para que eu também largasse a minha mulher e fosse viver com ele, mas isso era impossível, eu tinha medo que as pessoas descobrissem, cidade pequena você sabe como é, todo mundo se conhece, além do mais eu sou cristão, eu era conhecido por todo mundo no bairro e a vizinhança começou a me olhar desconfiada. A minha mulher começou a me pressionar, queria que eu confessasse porque o meu comportamento havia mudado tão radicalmente, queria saber quem era a mulher que tinha virado a minha cabeça. Até então eu não sabia que era bissexual, nunca tinha me acontecido antes, eu nunca tinha me interessado por nenhum outro homem, isto é contra a lei de Deus e eu não podia lhe contar a verdade. Pensei em me matar, mas isso também é contra a lei de Deus. Então ele também começou a me pressionar ainda mais, dizendo que iria contar toda a verdade para a minha mulher, que ele tinha largado a família dele por mim e que eu também tinha que fazer o mesmo. Ele não entendia que isso era impossível para mim, não entendia que aos olhos de Deus o que estávamos fazendo era completamente errado. Eu fiquei apavorado e no desespero, fiz o pior. Apareceu esta oportunidade de vir trabalhar nos navios e eu me inscrevi, sem que ele soubesse, é claro, depois que eu fui aprovado e os papéis ficaram prontos, dois dias antes do meu embarque eu o envenenei.
Nesse momento eu parei de tocar a melodia que eu estava dedilhando, enquanto ele prosseguia com a sua história.
- Coloquei veneno em sua bebida e o vi agonizar ali diante dos meus olhos. Depois apaguei minhas digitais e qualquer vestígio meu naquela casa, e deixei o corpo dele lá, como se ele tivesse cometido suicídio. Eu tive medo que quando eu viajasse, e ele descobrisse, ele contasse tudo para a minha mulher e arruinasse com a minha vida, então o matei, e fugi para o mar. Mas desde então eu não tenho dormido uma noite sequer em paz, entende Jaime? Quando eu fecho os olhos, vejo o rosto dele implorando por ajuda, a sua agonia nos minutos finais, o veneno lhe corroendo as entranhas e ele morrendo aos poucos, em sofrimento. Agora faltam dez dias para o meu contrato terminar e não sei o que me espera quando eu voltar para casa, não sei se a história do suicídio deu certo, não sei se a policia encontrou alguma pista minha, tenho medo de voltar e ser preso.
Quando ele fez uma pausa, eu estava perplexo com o que acabara de escutar, mas procurei não aparentar nada, e disse que na minha opinião, tudo era possível na vida, que eu não era nem cristão nem homossexual, mas que achava perfeitamente possível que duas pessoas do mesmo sexo se apaixonassem, mesmo sendo casadas com outras pessoas, mas que entendia o pânico dele, por morar num lugar pequeno onde todos se conheciam. Depois perguntei por que ele tinha me escolhido como cúmplice da sua história. Ele disse que eu era a única pessoa naquele navio em que ele podia confiar e que ele não agüentava mais conviver com este segredo, que tinha que contar para alguém senão ele iria enlouquecer, e me perguntou assustado se eu iria delatá-lo. É claro que eu o tranqüilizei, dizendo que não, que aquela história morreria comigo, que ele podia realmente confiar em mim, e que eu tinha certeza que não ia acontecer nada com ele, que quando ele chegasse em casa, iria encontrar sua família renovada, com mais um bebê para criar e que com o tempo, agora que ele desabafou, ele iria esquecer tudo, e que eu esperava vê-lo em dois meses outra vez. Ele me disse que em um mês, porque havia pedido apenas um mês de férias. Então encerramos a conversa, ele se despediu e foi embora do teatro, continuar o seu trabalho.
Naquela mesma noite nos encontramos no bar e eu procurei não tocar mais no assunto, nem naquela noite, nem nos dez dias restantes em que o Martin ficou a bordo, antes de ir de férias. Mas durante aqueles dez dias, eu também não pude dormir sossegado. Não podia imaginar, como uma pessoa jovem, bonita e talentosa como ele, poderia ter uma história daquele tamanho. Preferi acreditar, já que eu achava e acho, que tudo é possível, que aquilo tinha sido imaginação da cabeça dele, que ele tinha inventado aquela história para me impressionar, mas as vezes me batia a paranóia de que ele poderia ser um psicopata e eu não tinha me dado conta, e já que agora eu era o seu cúmplice, ele poderia querer apagar mais essa evidência, ou seja, me apagar. Se ele foi capaz de matar alguém com quem ele tinha um relacionamento e por quem ele estava apaixonado, poderia perfeitamente envenenar a minha bebida também. Evitei aparecer no bar por aqueles dias, e sempre que o via o tratava normalmente, como se nada tivesse acontecido, o chamando sempre de meu cantor, mas com a pulga atrás da orelha, contando os dias para ele sair de férias. O fato é que o Martin, não voltou depois das quatro semanas. Soube depois, pelo supervisor do departamento em que ele trabalhava, que ele tinha sido transferido para outro navio e nunca mais tive notícias dele. Ele nunca me escreveu uma linha, nem se despediu de mim quando foi embora. Tomara que ele tenha seguido o meu conselho de se mudar para os Estados Unidos para tentar a carreira artística. Torço sinceramente, para que tenha acontecido o melhor na vida daquele moço. Mas a sua história, que até então estava guardada comigo, nunca mais me saiu da cabeça.