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domingo, 2 de julho de 2017

SAUDADES DOS SETE MARES

Hoje é dia de viajar no tempo e matar as saudades do Rhapsody of the seas onde encontrei pessoas que levo no meu coração para sempre. Essa foi na festa de reveillon 2001/2002 com a mulher elétrica Patricia Sarabua Gaspar a gaja mais giro dos sete mares. Nesse navio tive um dos melhores roomates, Ramiro Andres Nasello, que com Pablo Alvarado e Silvana Mudir completava o quarteto latino inseparável. Beijos e abraços a todos. Saudades dos sete mares.

sábado, 12 de dezembro de 2015

O CENTENÁRIO DE UMA VOZ ETERNA


Em 12 de dezembro de 1915, nascia em Hoboken, New Jersey, Estados unidos, Francis Albert Sinatra, que viria a se tornar pouco mais tarde, o maior cantor de todos os tempos. Quando eu trabalhava nos navios de cruzeiro, o meu repertório em inglês no início, era limitado a umas dez ou quinze canções. Uma noite, o diretor musical de um dos navios em que trabalhei, bate à porta da minha cabine com uma pilha de Cd's nas mãos e me diz: "Nós adoramos o que você faz, mas você precisa não só melhorar o seu inglês, como também cantar mais em inglês e para fazer as duas coisas, você tem que escutar esse cara todos os dias, a dicção dele é perfeita". E me entregou a pilha de Cd's, com mais de 200 gravações de Frank Sinatra, a quem eu agradeço a minha pronúncia quase perfeita, quando canto na língua inglesa. Hoje portanto, celebramos o centenário de uma voz eterna.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

VIAJAR É PRECISO

Uma vez, em Vancouver no canadá, um motorista de taxi que me levou até o porto onde estava atracado o navio que eu trabalhava, ao saber que eu viajava pelo mundo cantando em navios de cruzeiro, me disse que quem viaja vive mais. Ouvindo aquilo, imediatamente me lembrei das palavras de Santo Agostinho:
"O mundo é um livro e aquele que não viaja, lê apenas uma página"
Donde se conclui que viajar é preciso.

sábado, 21 de janeiro de 2012

VADA A BORDO, CAZZO!


No trágico pastelão à italiana do Comandante do Costa Con(dis)córdia, além do possível desastre ecológico, causado não só pelo vazamento do combustível mas também pelo lixo do navio (milhares de garrafas plásticas e de vidro, milhares de latinhas de alumínio, toneladas de comida armazenada e o próprio esgoto da embarcação), é bom pensar que na pressa e no desespero, a grande maioria dos passageiros e tripulantes deixaram para trás, seus objetos pessoais, eletrônicos e "todo o dinheiro", o que torna o Costa Con(dis)córdia em um tesouro semisubmerso. Fico a me perguntar onde foi parar todo o dinheiro do cassino e o da caixa forte do navio...
O companheiro Luis Costa, que também é tripulante de navio diz: "Bom.... só o caixa forte do cassino deve conter muitos milhões de $$$$$ (dolares, euros) Lembrando que estávamos no meio do mês então era época de pagamento dos tripulantes. Pode-se calcular que existe muito mais dinheiro solto por aí..."

E eu completo: ou na conta do Comandante Schettino...

Repetindo as palavras do chefe da guarda costeira italiana:

Comandante Schettino, "VADA A BORDO CAZZO" ("suba a bordo c...")

terça-feira, 22 de março de 2011

A VIDA É BOA PARA QUEM SABE VIVER

Saindo do terminal marítimo de cruzeiros na belíssima Cozumel, no México, existe um bar que não tem nome, "NO NAME BAR", e que é o ponto de encontro da tripulação de todos os navios que aportam diariamente na ilha mexicana. Lá no NO NAME, além da tradicional simpatia dos mexicanos, podemos ter um bom sinal wireless free, enquanto desfrutamos da boa comida local e da deliciosa cerveja corona, que para mim é a melhor do mundo (a propaganda também é free). Mas o mais engraçado dentre as muitas coisas engraçadas que há no México é a camiseta que eles vendem nesse bar e que quase todo tripulante tem. "Eu juro que este é o meu último contrato", diz a camiseta, pois 99 por cento de todo tripulante já disse isso algum dia. Juramos, juramos e sempre voltamos, porque o mar e principalmente o dinheiro que se ganha na vida dura do mar, nos faz voltar sempre, como eu, que já jurei e hoje não juro mais nada. Para quem tem o humor ácido, e as vezes corrosivo como eu, é até divertido trabalhar em navios de cruzeiro, convivendo com pessoas de mais de setenta países diferentes, tipos únicos, que se você não tiver humor apurado não consegue encarar. Mas eu reconheço que para a grande maioria não é fácil enfrentar 12 horas de trabalho diárias, sem folga, o que não é o meu caso graças a Deus. Faço o que gosto, conheço o mundo e ganho dinheiro com isso. Vou jurar o que? A vida é boa para quem sabe viver.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

O CANTOR GOSPEL

Trecho do romance "Jaime, o marinheiro"

A HISTÓRIA DO MARTIN
(O cantor gospel)





Martin era um auxiliar de escritório natural da Guiana, ex colônia britânica e único país da America do sul cuja língua oficial é o inglês. Seus antepassados eram indianos e imigraram para a America para tentar uma vida melhor no novo continente. Nos conhecemos no Serenade, quando ainda estávamos no estaleiro e o navio não havia sido inaugurado oficialmente. Ele era um rapaz bonito, amigável, conversador e de boa instrução, tinha uns vinte e poucos anos e havia deixado duas filhas pequenas e a sua mulher grávida, em Georgetown, capital da Guiana. De vez em quando almoçávamos juntos no refeitório e ele me contava um pouco dos seus sonhos, que queria ser cantor, mas a vida dura que levava no seu país o obrigou a deletar este plano, logo depois que ele casou e constituiu família, então passou a cantar apenas na igreja, aos domingos. Martin era cristão convicto, falava muito em Deus e fazia constantemente citações da bíblia. Uma vez ele me mostrou uma foto de sua família, numa festa da igreja, ele, a mulher e as duas filhas pequenas. Uma família bonita e aparentemente feliz. Ele também aparentava ser uma pessoa feliz e tranqüila, com grande força de espírito, um cara lutador, que estava sempre fazendo trabalhos extras, para juntar mais dinheiro e sustentar a sua família, que logo iria ganhar mais um membro. Quando sua terceira filha nasceu, eu fui o primeiro saber. Comemoramos juntos, bebendo vinho no bar da tripulação até altas horas, conversando trivialidades, dando risada, celebrando o futuro daquela nova criança. Naquela noite eu sugeri que ele tirasse uma licença não renumerada de quinze dias, e fosse conhecer sua filha caçula, já que ainda faltavam seis meses para o contrato dele terminar. Ele disse que não, que uma passagem para a Guiana, custava muito dinheiro e que seis meses passavam rápido, o que eu entendi perfeitamente. O contrato do Martin era de oito meses e ele estava pensando em estender por mais dois meses. Dez meses no mar, dentro de um navio, trabalhando de sol a sol, bem, no caso de um navio, poderíamos dizer, trabalhando de lua a lua, que dá no mesmo.
Às vezes eu o convidava para sair e ele nunca aceitava pois estava sempre ocupado, fazendo hora extra, mesmo quando ainda estávamos no estaleiro, na Holanda, com Amsterdã a nossos pés, ele nunca saía do navio. Um dia eu perguntei se era a primeira vez que ele havia saído da Guiana, e ele respondeu que sim. Então lhe perguntei se ele tinha vindo trabalhar nos navios para ver o mundo como a maioria das pessoas, e ele disse que não, que tinha vindo trabalhar nos navios para fazer dinheiro para sua família, e que por isso não lhe interessava sair nos portos, que ele queria economizar para o futuro. Um caso comum na vida dos navios, trabalhar e fazer dinheiro, o que não era comum, era o fato de alguém nunca sair em nenhum porto, nem para respirar um ar diferente, ver outra paisagem, isso eu nunca tinha visto. Eu admirava muito a força de vontade daquele rapaz. O meu primeiro contrato terminou, eu fui de férias e quando voltei, seis semanas depois, o Martin ainda estava lá, no mesmo ritmo.
Sempre que ele podia, ele passava rapidamente pelos lugares onde eu estava tocando e ficava por alguns minutos escutando a música. De vez em quando também, ele aparecia no teatro no meio da tarde, quando eu estava treinando e numa daquelas tardes, ele me pediu para eu acompanhá-lo no show de talentos da tripulação, que iria acontecer dali a duas semanas. Eu aceitei com prazer e ensaiamos a canção que ele escolheu, uma balada gospel. Martin tinha uma voz bonita, afinada e na noite do show de talentos, ele ganhou disparado dos outros concorrentes. Eu fiquei impressionado com a força da sua interpretação, cheia de paixão e fé. Na hora da verdade ele cantou diferente dos ensaios, como um profissional, com belíssimos fraseados de jazz, como os negros norte americanos. Quando ele terminou, foi demoradamente aplaudido de pé, inclusive pela imensa torcida adversária, que era claro, a torcida filipina. Eu me vi diante de um dos maiores cantores que eu já havia escutado e sugeri que ele largasse aquela vida no mar e emigrasse para os Estados Unidos, pois ele poderia, com persistência, força de vontade e um pouco de sorte também, ficar rico em pouco tempo, cantando. Ele me respondeu que só cantava para louvar ao Senhor e que não pensava mais em fazer carreira, que isso era coisa do passado. Mesmo assim sempre que o encontrava eu o chamava de “meu cantor.”
Duas semanas depois do show de talentos, ele me apareceu no teatro, no meio da tarde. Sua fisionomia estava diferente, angustiada, parecia inclusive que ele tinha chorado, seus olhos estavam vermelhos. Assim que o vi, pude perceber que havia algo de errado com ele, então sorri e fiz um sinal com a cabeça para que ele se aproximasse e perguntei:
- Como vai o meu cantor predileto, o que vamos cantar hoje?
Ele respondeu que naquela tarde ele só queria escutar um pouco de música, que precisava mais do que nunca relaxar, e ficou de pé, ao lado do piano, o olhar fixo, distante, os olhos marejados. Eu percebi que ele precisava desabafar algo, então diminuí o andamento da música que eu estava tocando, que por coincidência era “you’ve got a friend,” do James Taylor e disse baixinho, que ele podia falar que eu estava escutando. Depois de um breve tempo em silencio, Martin começou a sua história.
- Você acha que existe crime perfeito?
Eu respondi que dependia do crime, mas que a maioria sempre acabava sendo descoberto, mais cedo ou mais tarde e perguntei por que ele tinha feito aquela pergunta. Ele não respondeu e depois de outra breve pausa prosseguiu.
- Sabe por que durante todo este tempo que eu estou aqui, eu nunca saí do navio?
Eu respondi que não com a cabeça e ele continuou, falando baixo e devagar.
- Eu estou aqui fugindo dos crimes que eu cometi. Eu resolvi fugir para o mar, para me auto punir, me aprisionei por vontade própria, pois eu não podia mais olhar nos olhos da minha família.
Eu perguntei o que aconteceu e fiquei dedilhando uma melodia aleatória, bem lenta, e ele continuou, desta vez sem interrupção.
- Eu já estava casado há quatro anos quando conheci um outro rapaz, também casado, mas que não tinha filhos e que trabalhava perto do escritório onde eu trabalhava, no centro da cidade. Sempre nos encontrávamos na saída do trabalho, no final da tarde, e começamos a sair. No principio era só amizade, saíamos para tomar cerveja e conversar, falar do futuro, das nossas famílias, essas coisas. Um dia aconteceu, fizemos sexo, uma, duas, três vezes, e nos apaixonamos. Ele largou a mulher dele e alugou uma casa no subúrbio de Georgetown, onde tínhamos os nossos encontros secretos. Minha mulher pensava que eu tinha outra mulher, pois eu chegava sempre tarde em casa e às vezes dormia fora, na casa dele, com a desculpa de que estava fazendo hora extra no emprego. Ele começou a me pressionar para que eu também largasse a minha mulher e fosse viver com ele, mas isso era impossível, eu tinha medo que as pessoas descobrissem, cidade pequena você sabe como é, todo mundo se conhece, além do mais eu sou cristão, eu era conhecido por todo mundo no bairro e a vizinhança começou a me olhar desconfiada. A minha mulher começou a me pressionar, queria que eu confessasse porque o meu comportamento havia mudado tão radicalmente, queria saber quem era a mulher que tinha virado a minha cabeça. Até então eu não sabia que era bissexual, nunca tinha me acontecido antes, eu nunca tinha me interessado por nenhum outro homem, isto é contra a lei de Deus e eu não podia lhe contar a verdade. Pensei em me matar, mas isso também é contra a lei de Deus. Então ele também começou a me pressionar ainda mais, dizendo que iria contar toda a verdade para a minha mulher, que ele tinha largado a família dele por mim e que eu também tinha que fazer o mesmo. Ele não entendia que isso era impossível para mim, não entendia que aos olhos de Deus o que estávamos fazendo era completamente errado. Eu fiquei apavorado e no desespero, fiz o pior. Apareceu esta oportunidade de vir trabalhar nos navios e eu me inscrevi, sem que ele soubesse, é claro, depois que eu fui aprovado e os papéis ficaram prontos, dois dias antes do meu embarque eu o envenenei.
Nesse momento eu parei de tocar a melodia que eu estava dedilhando, enquanto ele prosseguia com a sua história.
- Coloquei veneno em sua bebida e o vi agonizar ali diante dos meus olhos. Depois apaguei minhas digitais e qualquer vestígio meu naquela casa, e deixei o corpo dele lá, como se ele tivesse cometido suicídio. Eu tive medo que quando eu viajasse, e ele descobrisse, ele contasse tudo para a minha mulher e arruinasse com a minha vida, então o matei, e fugi para o mar. Mas desde então eu não tenho dormido uma noite sequer em paz, entende Jaime? Quando eu fecho os olhos, vejo o rosto dele implorando por ajuda, a sua agonia nos minutos finais, o veneno lhe corroendo as entranhas e ele morrendo aos poucos, em sofrimento. Agora faltam dez dias para o meu contrato terminar e não sei o que me espera quando eu voltar para casa, não sei se a história do suicídio deu certo, não sei se a policia encontrou alguma pista minha, tenho medo de voltar e ser preso.
Quando ele fez uma pausa, eu estava perplexo com o que acabara de escutar, mas procurei não aparentar nada, e disse que na minha opinião, tudo era possível na vida, que eu não era nem cristão nem homossexual, mas que achava perfeitamente possível que duas pessoas do mesmo sexo se apaixonassem, mesmo sendo casadas com outras pessoas, mas que entendia o pânico dele, por morar num lugar pequeno onde todos se conheciam. Depois perguntei por que ele tinha me escolhido como cúmplice da sua história. Ele disse que eu era a única pessoa naquele navio em que ele podia confiar e que ele não agüentava mais conviver com este segredo, que tinha que contar para alguém senão ele iria enlouquecer, e me perguntou assustado se eu iria delatá-lo. É claro que eu o tranqüilizei, dizendo que não, que aquela história morreria comigo, que ele podia realmente confiar em mim, e que eu tinha certeza que não ia acontecer nada com ele, que quando ele chegasse em casa, iria encontrar sua família renovada, com mais um bebê para criar e que com o tempo, agora que ele desabafou, ele iria esquecer tudo, e que eu esperava vê-lo em dois meses outra vez. Ele me disse que em um mês, porque havia pedido apenas um mês de férias. Então encerramos a conversa, ele se despediu e foi embora do teatro, continuar o seu trabalho.
Naquela mesma noite nos encontramos no bar e eu procurei não tocar mais no assunto, nem naquela noite, nem nos dez dias restantes em que o Martin ficou a bordo, antes de ir de férias. Mas durante aqueles dez dias, eu também não pude dormir sossegado. Não podia imaginar, como uma pessoa jovem, bonita e talentosa como ele, poderia ter uma história daquele tamanho. Preferi acreditar, já que eu achava e acho, que tudo é possível, que aquilo tinha sido imaginação da cabeça dele, que ele tinha inventado aquela história para me impressionar, mas as vezes me batia a paranóia de que ele poderia ser um psicopata e eu não tinha me dado conta, e já que agora eu era o seu cúmplice, ele poderia querer apagar mais essa evidência, ou seja, me apagar. Se ele foi capaz de matar alguém com quem ele tinha um relacionamento e por quem ele estava apaixonado, poderia perfeitamente envenenar a minha bebida também. Evitei aparecer no bar por aqueles dias, e sempre que o via o tratava normalmente, como se nada tivesse acontecido, o chamando sempre de meu cantor, mas com a pulga atrás da orelha, contando os dias para ele sair de férias. O fato é que o Martin, não voltou depois das quatro semanas. Soube depois, pelo supervisor do departamento em que ele trabalhava, que ele tinha sido transferido para outro navio e nunca mais tive notícias dele. Ele nunca me escreveu uma linha, nem se despediu de mim quando foi embora. Tomara que ele tenha seguido o meu conselho de se mudar para os Estados Unidos para tentar a carreira artística. Torço sinceramente, para que tenha acontecido o melhor na vida daquele moço. Mas a sua história, que até então estava guardada comigo, nunca mais me saiu da cabeça.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A LAVANDERIA

Trecho do romance "Jaime, o marinheiro".


A história da Adriana.


A lavanderia é um ponto de encontro. Existem geralmente, duas lavanderias para os tripulantes, com quatro máquinas de lavar e secar cada uma. Se você vai lavar roupa, é melhor levar um livro pra ler, ou uma música para escutar e ficar de plantão por lá até a sua roupa secar, pois se você vacilar, alguém pode tirar a sua roupa da secadora, ainda molhada, para colocar as dela, deixando as suas no chão, ou então, simplesmente podem roubar algumas peças, normalmente as íntimas. Eu nunca entendi a razão pela qual alguém pode roubar calcinhas, cuecas e meias que não lhe pertencem, mas em um navio as coisas não precisam de um motivo lógico para acontecer, de maneira que a lavanderia é um lugar que está sempre movimentado. As pessoas ficam por ali, ou esperando a roupa lavar e secar, ou esperando por uma máquina disponível. Eu gostava de lavar roupa de madrugada, quando o movimento era menor.

Naquela noite eu tinha acabado de colocar a minha roupa na secadora, quando Adriana chegou.

- Oi, você não é o pianista que toca no lobby? Que bonita a maneira que você toca. É música brasileira aquilo não é? Me encanta a música brasileira. É uma vida boa esta vida de músico não é? Eu estou cansada de carregar pratos e de aturar esses gringos malditos, eu queria ser artista, cantora, dançarina, sei lá, tocar um instrumento, ter uma vida fácil como a de vocês.

- E o talento? Você tem algum talento para cantar, dançar ou tocar algum instrumento?

Perguntei, interrompendo o discurso daquela gorda que não parava de falar. Ela respondeu que talento pra cantora não, porque não tinha uma voz bonita nem era afinada, mas que para atriz talvez, que quando ela era pequena, ela queria ser atriz de novela de televisão, que achava lindo as atrizes de telenovela, sempre lindas, sempre maquiadas, com roupas elegantes. Nesse ponto ela fez uma pausa e me pediu desculpas por interromper a minha leitura. Eu disse que não tinha importância, que tudo bem, que ela podia continuar falando que eu estava escutando, mas antes que ela continuasse e aproveitando que ela estava colocando sabão na máquina de lavar, eu perguntei como era o seu nome, o que ela fazia a bordo e porque que ela tinha vindo trabalhar nos navios.

Adriana era chilena, de Punta Arenas, no sul do país. Ela era uma morena clara, baixinha e gorda, da cara redonda, os cabelos lisos, pintados de louro, com traços visivelmente andinos, de olhos pequenos e apertados, como os índios. Eu me apresentei, disse meu nome, que era do Rio de janeiro, e ela, sem olhar diretamente nos meus olhos, depois de colocar a sua roupa para lavar, se recostou na parede e olhando para o chão, deu um suspiro longo e começou:

- Eu tinha quase vinte anos, quando um dia, na cozinha da casa da minha mãe, ajudando a mamãe a lavar os pratos do almoço, eu olhei para os meus sapatos, que estavam furados de tão velhos, e pensei que eu não podia continuar daquela maneira. Aqueles eram os meus únicos sapatos e eu já tinha praticamente vinte anos, não podia seguir pedindo que a minha mãe me comprasse sapatos e roupas novas. Somos uma família pobre entende? Então eu resolvi ir embora do Chile. Escrevi para uma tia minha que morava na Alemanha. A minha tia tinha um pequeno restaurante em Hamburgo e precisava de alguém que a ajudasse no serviço. Ela me mandou a passagem e eu fui. Trabalhei com ela quase cinco anos, morando na casa dela, com seu marido e os meus dois primos. Paguei a passagem aos poucos, com o meu trabalho, que era basicamente, limpar, lavar e cozinhar para eles e para os clientes do restaurante. Trabalhei duro, aprendi a falar alemão, fiz boas amizades. Um dia um casal belga, que eram clientes do restaurante, me convidou para eu ir com eles para Bélgica, cuidar do bebê deles. Como eu já estava cansada daquele trabalho no restaurante, eu fui. Fiquei com os belgas mais ou menos uns dois anos, aprendi um pouco de Francês, e aí então, eu conheci o Arquimedes, um grego bonito, que estava de passeio em Bruxelas. Nos conhecemos num parque e foi amor à primeira vista. Naquele tempo eu não era gorda assim não Seu Jaime, eu era magrinha, bonita. Ele gostou de mim e me levou pra viver com ele na Grécia. Vivemos juntos nove anos. A família dele tinha muito dinheiro, trabalhavam com jóias, mas ele tinha problema com drogas, era viciado em cocaína. No principio eu nem desconfiava, mas depois eu descobri, e isso é a pior desgraça que pode acontecer a uma pessoa. Esse vício acaba com qualquer um. Eu não gostava daquilo e ele começou a ficar violento, passou a me bater, minha vida virou um inferno.

- E você falava grego?

Perguntei para que ela pudesse respirar e eu também, pois a história já estava ficando grande demais. Ela continuou.

- Pois é, tive que aprender, é claro, falo fluentemente, melhor que alemão e francês.

- Quer dizer então que você pode falar com o comandante Antalis em grego?

- Sim, é claro que posso, sempre que passo por ele lhe digo “kalimera capitanea”, que quer dizer, bom dia comandante, mas ele só responde com um sorriso, não dá muita conversa não, quem vai dar conversa pra uma garçonete?

O Comandante Antalis era o Comandante do Serenade e era um cara super popular, que todos adoravam. Quase todas as noites ele vinha escutar a minha música e de vez em quando conversávamos. Ele esteve algumas vezes no Brasil, quando trabalhava em navios de carga e como bom grego, era um mulherengo de primeira e adorava as mulheres brasileiras. Mas voltando a Adriana, que eu já havia percebido que tinha a auto estima baixíssima.

Ela perguntou se não me estava atrapalhando e eu disse que não, que estava interessado na sua história e ela prosseguiu dizendo que quando ela se cansou de apanhar do grego, juntou o pouco dinheiro que tinha guardado, comprou uma passagem para o Chile e fugiu dos mal tratos do companheiro. Depois de quase dezessete anos, ela voltou para a casa dos pais, com uma mão na frente e outra atrás, exatamente como havia saído, deixando na Grécia, o seu marido viciado e truculento, jóias, casa, roupas de grife e toda a vida confortável que ela teve, enquanto morou com ele.

- Quando ele não estava cheirado era uma ótima pessoa, carinhoso, fazia tudo que eu queria, me dava de tudo, jóias, viagens. Mas quando estava sob o efeito da droga, se transformava, deixei tudo para trás e fugi pro Chile. Um dia eu vi um anúncio num jornal, que estavam recrutando gente para trabalhar em navios de cruzeiro. Eu fiz a entrevista para garçonete e aqui estou, trabalhando como uma escrava, engordando como uma porca, porque jurei para mim mesmo, que nunca mais eu iria precisar de homem nenhum, nem de ninguém para me sustentar. Hoje eu ajudo a minha família, já compramos uma casa confortável, já conheci mais de vinte países, e só vou ao Chile de férias, mas estou cansada, sabe Seu Jaime, já tenho quarenta e dois anos, estou cansada.

Eu disse que ela podia me chamar de Jaime apenas, que deixasse o senhor pra lá, pois nós tínhamos quase a mesma idade. Ela se espantou, dizendo que eu parecia ter dez anos a menos. Eu agradeci e disse que a culpa era da música e sugeri que ela tentasse passar para outro departamento, pois ela falava vários idiomas e poderia ser uma embaixadora internacional, ou mesmo, trabalhar como tradutora no seu país. Depois agradeci pela confiança dela ter me contado a sua história, recolhi a minha roupa que já estava seca e fui embora pensando naquilo tudo que eu havia acabado de escutar. Durante o tempo em que trabalhamos no mesmo navio, sempre que a encontrava eu perguntava:

- E aí Adriana, já está providenciando a mudança de departamento?

Ela sorria e dizia, que qualquer dia ia ver isso. E eu nunca soube que fim levou a Adriana. Se ela virou uma embaixadora internacional ou se seguiu sendo garçonete no dinnig room. Embaixador internacional é um cargo importante, com direito a cabine individual e tudo. Para ocupar este cargo, a pessoa tem que falar pelo menos, três idiomas além do inglês, que são o espanhol, o Frances e o alemão. E a Adriana de quebra, ainda falava grego.