quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A MULA

Trecho do romance "Jaime, o marinheiro"


A história do Nuno.


Lá no Serenade, teve uma época em que a comunidade que falava português era razoavelmente grande. Éramos quatorze, dois brasileiros, nove portugueses, um canadense filho de portugueses, um sul africano que morou em Lisboa por muitos anos e um angolano. O angolano se chamava Nuno, e era um mulato nem alto nem baixo, nem bonito nem feio, que estava começando a ficar careca e era muito calado. Estávamos no final de ano, perto do natal, quando alguém descobriu que se podia comprar bacalhau de boa qualidade em Porto Rico. Daí resolvemos comemorar o nosso natal a grande, como se diz lá em Portugal. Reunimos a pequena comunidade, pedimos autorização para usar o bar de staff e oficiais, que sempre estava vazio e desocupado, já que a maioria preferia mesmo era ir para o bar da tripulação, que era maior e mais animado, e organizamos o nosso natal, com direito a bacalhoada, música, troca de presentes e muito, muito vinho. Foi nessa noite que eu conheci o Nuno.

O Nuno tinha, segundo ele, vinte e seis anos, mas parecia ter muito mais de trinta. Eu sempre o via no refeitório, mas não sabia que ele falava português, nem que era angolano. Eu tinha levado, a pedidos, um teclado que conseguira emprestado com um dos músicos da orquestra e lá pras tantas, depois da troca de presentes e com muitos copos na cabeça, comecei a tocar. A turma toda em volta cantando, pedindo uma música e outra e eu lá, de super bom humor, atendendo aos pedidos e me divertindo também. Aos poucos o grupo foi diminuindo, pois alguns tinham que acordar cedo para trabalhar e no final ficamos eu, o Claudio, que trabalhava nos bares e o Nuno, que como eu fiquei sabendo naquela noite, trabalhava como garçon no dinning room. Ficamos os três, bebendo, eu tocando baixinho, e os dois escutando e conversando entre si. O Claudio pegou no sono e o Nuno se aproximou e foi logo dizendo:

- Pois é brazuca, faz tempo que o senhor trabalha aqui nos navios?

Eu respondi que aquele já era o meu sexto contrato e perguntei quantos contratos ele já tinha feito. Ele respondeu que era o primeiro e com certeza o último. Eu disse que já conhecia aquela estória e perguntei como ele veio parar ali. Ele já estava muito bêbado, mas firme. Então sorriu e me disse que estava ali fugido da polícia. E explicou na maior naturalidade, enquanto eu continuava tocando e escutando a sua história.

- Eu trabalhava em Luanda para um alemão filho da puta que era traficante de drogas, eu era uma espécie de gerente da boca, o senhor entende? Mas fui me meter com a mulher do sujeito, uma preta gostosa que de vez em quando eu comia. A preta era safada, dava pra todo mundo e o gringo desconfiava. Um dia lá, a preta apareceu morta, com dois tiros na cara e o gringo quis me incriminar. Antes que a policia me pegasse, eu fugi pra Lisboa e lá eu arrumei serviço num cargueiro que vinha pros Estados Unidos. Arrumei os papeis e fui pra Miami. Em Miami eu trabalhei num restaurante indiano, até que eu vi o anúncio que estavam recrutando garçon para trabalhar em navio de cruzeiro e aqui estou. O senhor tem cara que gosta de uma farinha. Eu soube que em San Juan...

Antes que ele continuasse eu o interrompi dizendo que ele tivesse cuidado de comentar essas coisas dentro de um navio, porque ali dentro ninguém podia confiar em ninguém. Ele falou que “o gajo estava a dormir”, se referindo ao Claudio. E continuou dizendo que em San Juan ele tinha conhecido uns caras que tinham uma farinha da boa. Eu dei risada e disse que se era farinha não podia ser da boa, pois farinha no Brasil era droga malhada, misturada, de má qualidade. Ele riu e perguntou se eu não queria ir com ele na próxima vez que o navio parasse em Porto Rico, para comprar da boa. Eu disse que não cheirava mais e que ele não levasse aquilo pra dentro do navio, pois se pegassem, ele estava frito. Nesse ponto o Claudio acordou e eu achei melhor dar por encerrada aquela brincadeira natalina. Arrumamos e limpamos o salão e eles me ajudaram a levar o teclado de volta até o teatro.

Mas o Nuno não largava do meu pé. Virava e mexia, lá estava ele, aonde quer que eu estivesse tocando, dizendo:

- Ô pá, passei por aqui só pra escutar a sua música, o senhor toca muito bem, se eu soubesse tocar assim, não estaria carregando bandeja.

Um dia, eu estava num intervalo, indo em direção ao banheiro, quando encontro com o Nuno, uniformizado, cheirando a álcool e todo sorridente, logo ele que era um sujeito calado, todo fechado. Quando ele me viu, veio na minha direção e estendeu a mão para me cumprimentar. Eu estendi a minha também e senti que ele estava tentando me passar algo, que havia algo como uma pedaço de papel entre a sua mão e a minha. Eu retirei a minha mão e um papelote de cocaína caiu no chão, aos meus pés. Ele se abaixou, recolheu o troço do chão e me disse baixinho:

- Pô brazuca, vai me fazer essa desfeita, estou indo embora daqui a duas semanas, vou levar um carregamento pra Europa, e trouxe uma mostra pro senhor matar a saudade. Se o senhor gostar podemos fazer sociedade. Eu sei que no senhor eu posso confiar.

Eu sorri fingindo estar achando engraçado aquilo tudo e disse baixinho também, sorrindo e olhando nos olhos dele, que ele sumisse com aquilo dali naquele minuto, que ele podia sim confiar em mim, mas que eu ia fazer de conta que não tinha acontecido nada e que ele fosse escovar os dentes e colocar um desodorante, por que ele estava cheirando a álcool, muito forte e que se um passageiro reclamasse, ele estaria em maus lençóis. Ele disse que os passageiros que se fodessem, pois ele já estava indo embora mesmo, e que se eu mudasse de idéia, que o encontrasse no bar mais tarde.

Fiquei as duas semanas seguintes sem aparecer no bar. Na véspera dele ir embora, eu o encontrei casualmente e ele me falou todo misterioso.

- Como é que é ô brazuca, o senhor sumiu. Amanhã é o grande dia. Já tenho tudo arranjado, pego a carga no aeroporto e me mando pra Europa. Se quiser vir comigo, ainda está em tempo.

Eu lhe desejei boa sorte e brinquei com ele, dizendo que agora que ele iria ficar rico e livre daquela escravidão, não esquecesse dos pobres e que desse notícias, se pudesse. Nuno foi embora e nunca mais se soube dele. Eu fiquei lembrando do Dr. João Carlos, o médico brasileiro, que disse que iam tentar me fazer de mula, que iam me pedir para levar droga de um porto pra outro. De uma certa forma, quatro anos depois, o Doutor João ainda continuava acertando.





3 comentários:

Anônimo disse...

Grande foto, Ricco! Aparece diferente do navio de cruzeiro quando eu sou um passageiro!
Eu trabalho duro para ler e traduzir o seu blog. Espero que você entenda os comentários que eu escrevo em Português aqui para você. Felicidades.

Ricardo Heleno Ribeiro disse...

por que estes avisos da foto só estão na area de tripulantes.

Anônimo disse...

Claro que eu sei isso, eu estou brincando com você, Ricco!