Trecho do romance "Jaime, o marinheiro"
A história do viúvo
Eu também contei as minhas histórias, melhor dizendo, estórias. Um navio é como uma pequena vila, uma comunidade onde vive um pequeno número de pessoas e como todo lugar pequeno, todo mundo sabe da vida de todo mundo. Isto eu percebi desde o meu primeiro contrato, daí que eu procurei me preservar ao máximo, dando o mínimo de informação possível sobre a minha privada. Ora, já não bastava ter que dividir cabine, aturar o ronco, os peidos, os arrotos e o mau cheiro de um desconhecido, e ainda ter que se fingir de intimo daquelas pessoas? Comigo não. Vida privada é vida privada e a minha, eu deixei em terra, a bordo eu era uma outra pessoa, ou melhor, varias pessoas. Inventei uma brincadeira de contar uma estória diferente para cada um. Sempre que me perguntavam algo sobre a minha vida pessoal, e eu percebia que era só por curiosidade, para passar adiante, eu inventava uma estória, de preferência dramática, porque o ser humano adora mesmo é ver a desgraça do outro. Como a estória de que eu era viúvo.
Sandra era uma peruana, descendente de japoneses, e trabalhava na recepção. Ela já estava naquela vida de navios há muitos anos e o seu grau de informação não passava da revista “hola”, ou “caras”, essas revistas de fofoca, de forma que ela era a fofoqueira mor do Brilliance. Sandra sabia da vida de Deus e o mundo, até da vida do Comandante. Se você queria saber das novidades, com riqueza de detalhes, perguntasse a Sandra, e ela lhe contava com o maior prazer.
Eu costumava sentar na mesma mesa todos os dias, seja no almoço ou no jantar, era uma mesa no canto, próximo a uma janela, para desfrutar da luz natural que eu não tinha na cabine. De vez em quando a Sandra vinha e sentava comigo para comer, e me contava as últimas, sem que eu perguntasse, é claro. Coisas do tipo, quem tinha comido quem na noite anterior, quem era veado, quem ia ser despedido e porque, e até quem tinha o pau pequeno e mau hálito. Sandra era um poço de cultura inútil. Num daqueles almoços em que eu era forçado a desfrutar da sua companhia, ela se estendeu até um pouco mais além da sobremesa e ficou ali, sozinha comigo, repassando o que não me interessava, até que ela me perguntou o que eu já estava esperando fazia um bom tempo.
- E você Jaime, você está sempre sozinho, raramente aparece no bar, nunca vem às festas, nem quando a bebida é de graça. Aposto que você tem uma namorada a bordo, ou será um namorado? Sabe como é, na vida de navio tudo é super normal.
Aquilo foi demais, mas não tanto quanto o que ela iria escutar. Eu abaixei a cabeça, fiz um ar de triste, fiquei calado por longos dez ou quinze cinco segundos, tempo suficiente para ela pegar na minha mão e dizer para eu não ficar encabulado, que podia desabafar, que ela não iria contar pra ninguém. Então eu respirei fundo e comecei a contar a minha estória solenemente, sem levantar os olhos da mesa, nem tirar a minha mão da dela.
- Sabe Sandra, eu não gosto de falar da minha vida pessoal, mas como você é de confiança eu vou lhe contar. Desde que a minha mulher morreu, de câncer, no cérebro, e eu tive que criar o meu filho sozinho, eu decidi que não iria nunca mais, ter outra pessoa na minha vida. A Rosana foi e é, o grande amor da minha vida, a mãe do meu único filho, a mulher que me amou, que se sacrificou por mim, a pessoa que eu mais amei e tenho certeza que foi a que mais me amou também, mais do que a minha própria mãe. A doença apareceu de repente, começou com uma dor de cabeça que não passava, quando os médicos descobriram já era tarde, ela morreu em menos de seis meses. Nosso filho tinha sete anos e eu tive que ser pai e mãe dele. Quando ele completou quinze anos, e já estava podendo se virar sozinho, apareceu esta oportunidade de vir trabalhar nos navios e eu aceitei. Deixei o meu filho na casa da minha mãe e aqui estou, para me esquecer desse passado, pois ainda me dói muito, a presença dela ainda é muito forte, por isso eu não vou as festas, e sou este cara triste que você está vendo.
Quando eu levantei os olhos, Sandra estava aos prantos, lágrimas de crocodilo rolavam dos seus olhinhos de japonesa emprestada. Eu segurei a sua mão com força e disse que estava tudo bem, que ela não chorasse, porque ali no navio eu era feliz, pelo menos tinha um trabalho que aliviava a minha dor e amigos de verdade como ela. Sandra enxugou as lágrimas e disse que sentia muito e me pediu desculpas por ter pensado mal de mim, que não tinha sido por maldade, mas como eu era muito calado, não conversava com ninguém, ela imaginou que eu tinha algum segredo. Eu respondi que tinha, mas que agora ela já sabia qual era e que não se preocupasse que eu estava bem, que eu tinha certeza que lá do céu, a Rosana estava olhando por mim e pelo nosso filho. Ela se despediu dizendo que já estava atrasada para o turno da tarde e foi embora me prometendo que iria guardar aquele nosso segredo a sete chaves.
Depois que ela saiu, eu fiquei na mesa segurando o riso por não mais de cinco minutos, terminando a sobremesa, quando chegou o Robert, um uruguaio que trabalhava no cassino e que tinha acabado de encontrar com a Sandra no corredor, fora do refeitório.
- Jaime, eu não sabia que você era viúvo, poxa cara sinto muito, encontrei a Sandra chorando no corredor e ela me contou a sua história.
Eu respondi contendo o riso.
- Pois é, ela lhe contou foi? Mas já está tudo bem, isso foi há muitos anos. Eu agora estou em outra.
Passei o resto daquele contrato sendo tratado como um idiota desamparado. As pessoas quando me encontravam, me olhavam como se eu fosse um coitadinho, mas não ousavam tocar no assunto. Eu me divertia imaginando o que eles comentavam pelas costas, e as coisas absurdas que especulavam. Aí eu fui me especializando no assunto, às vezes eu dizia, que nunca mais tinha conseguido ter uma ereção, que tinha ficado broxa, e me aproveitando disso, só comia quem me interessava de verdade, deixava me seduzir, me fazia de bobo e pimba, depois caía fora, como manda o figurino do bom marinheiro. Uma vez, para impor respeito, disse que o meu filho ia ser pai, e eu avô. Até ursinho de pelúcia ganhei de presente, de uma russa, que quis comer o vovô e me seduziu com um presentinho para o meu futuro netinho, acompanhado de um cartão que dizia: “para o vovô mais sexy dos mares”. Depois da russa, todo mundo queria comer o vovô, e eu segui tirando partido da situação, quando bem queria e a presa me apetecia.
Um comentário:
Parece que o vovô era ganancioso e comi muito, mas espero que o vovô ficou segura.
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