Vivia eu num quarto alugado, em casa de um amigo, que sequer me cobrava aluguel quando meu dinheiro faltava, pois eu era um artista vagabundo e sem futuro, onde o bom vento não costumava soprar com frequência. Ele era rico e precisava de companhia, ele gostava de ter dentro de casa, aquele contra ponto para a sua vida, apesar do desconforto dos meus humores, pois nunca fui muito chegado a humanos, e se estava em maus dias, não havia quem me arrancasse uma só palavra.
Assim eu vivia, até que um dia, o meu amigo, ganhou de presente uma cadela da raça dashund, daquelas que parecem uma lingüiça e fazia comerciais na televisão. Ele sabia que eu não era muito chegado a animais e aceitou o presente de bom grado, mais pelo prazer de se ver livre daquele inquilino/hóspede, mal humorado, que não ajudava nas contas, nem prosperava na vida, do que pela alegria de ter um animal de estimação em casa. Ele sabia que eu não iria suportar aquele intruso dentro da casa que não era minha, dividindo o espaço que não era meu, mas que por uso capião, me considerava dono.
Por uma dessas circunstâncias que até hoje não sei explicar, assim que botei os olhos em Laura, caí de amores por ela. Foi um amor inteiro, que nunca havia sentido e se há outras vidas, estava ali, naquele instante, estabelecido o reencontro de almas que se amaram em outra encarnação. Os cães, ao contrário de nós, seres humanos, que não escolhemos os pais, escolhem os seus donos e deles se apoderam. Assim, Laura fez comigo. Ela mal cabia na palma da minha mão quando a peguei pela primeira vez, com quarenta e cinco dias de nascida. Seus pelos castanhos e seus inexplicáveis olhos verdes, me conquistaram de imediato e naquele mesmo dia ela passou a dormir no meu quarto.
Era sábado, e eu, músico da noite, costumava chegar tarde em casa, principalmente nos finais de semana. O amigo dormia seu sono despreocupado, o sono dos ricos, e Laura, talvez estranhando a ausência do calor materno, de quem estava recém separada, não parava de chorar, trancada na área de serviço do apartamento. Depois de várias tentativas inúteis para acalmar a coitadinha e fazê-la dormir, resolví forrar o chão do meu quarto com folhas de jornal e levei Laura pra lá, dentro da sua caixinha de sapatos, que lhe servia de berço. Assim ela determinou o seu território de sossêgo. Ali ela escutava música todos os dias, quando eu estava praticando ou ensaiando alguma peça nova. Na porta daquele quarto, ela esperava pacientemente todas as noites pelo seu dono, quando ele voltava do trabalho, pois por outra estranha coincidência, desde que Laura chegou na minha vida, os shows passaram a ser mais freqüentes e até arrumei um emprego fixo, tocando de segunda a sexta, numa grande rede hoteleira.
Laura foi o vento bom que soprou a minha vida com força. Eu acordava feliz, Laura pulava em cima da minha cama e me sorria balançando o rabo, então eu a levava para passear. Todos os dias era assim, tomávamos o café da manhã juntos e íamos passear na lagoa perto de casa e brincar com os outros cachorros e os seus pares. Se eu adoecia, e isso graças a Deus era raro acontecer, ela não saía do pé da minha cama e adoecia junto comigo. Nos cuidamos, um do outro, com amor e dedicação, até onde o ciúme do seu suposto dono permitiu. O plano dele havia naufragado no nosso amor humanamente canino. Eu agora estava mais poderoso do que nunca, até carro havia comprado e levava Laurinha para passear de carro sempre que podia. Eu era o dono que Laura escolhera. Ao invés de se aliar a nós, ele, o amigo, se voltou contra mim, mal me dirigindo palavra e olhar, numa tentativa inútil de me humilhar, pelo abandono da sua cadela e pelos aluguéis atrasados do passado, por não conquistar nada na vida, sequer o amor do cão que lhe fora dado de presente um dia.
Defeitos carrego comigo de sobra e se tem uma coisa que eu não suporto é humilhação. Também sou vingativo, comigo não tem perdão, sou ruim mesmo, principalmente quando se trata de salvar a minha pele, ferida em meu orgulho. Meu amigo passou a implicar com tudo, sempre alegando que aquela casa lhe pertencia, que a cadela era dele, que me havia sustentado anos a fio e todas aquelas coisinhas miúdas que os pobres de espírito carregam consigo. Eu aturei até onde deu, única e exclusivamente por amor a Laura, afinal eram três anos e dois meses de um amor fiel e divertido, mas agora, àquela altura, eu podia alugar um apartamento só para mim, tinha emprego fixo, bom salário e assim o fiz. Fui embora daquela casa sem olhar para trás, jurando nunca mais passar pela porta daquele prédio.
O tiro atingiu em cheio o coração de Laura. Amigos em comum me contaram depois, que ela teve um câncer nos ovários, mas que sobreviveu à cirúrgia para extirpá-lo com sucesso e bravura. Câncer é doença causada por um ressentimento profundo, uma forte saudade, uma dor irreparável, uma grande traição mal assimilada, assim explicam os místicos. Laura se sentiu traída por mim e resolveu se vingar. Laura teve um câncer para que eu não o tivesse. Me contaram também que ela tentou o suicídio, escapando da guia do seu dono e se atirando no meio dos carros algumas vezes, como se estivesse querendo dizer, “não, eu não te quero, não foi você que eu escolhi”.
Eu sigo tentando salvar a minha pele com a coragem que tenho e se for preciso, com alguma dose de covardia também, como o ato covarde de abandonar um grande amor sem lhe dizer adeus, nem olhar para trás. Passados dez anos da nossa separação, a saudade não diminui, mas entre eu e qualquer outra coisa, farei sempre a escolha por mim, não fui feito para me sacrificar por nada, nem por ninguém. Entretanto, jamais esquecerei este amor que tive e agradeço aos deuses por aquele presente em minha vida. Por causa dela, hoje guardo permanentemente forte, o carinho e o afeto pelo melhor amigo do homem, e sempre me pergunto, todas as vezes que eu me lembro dela, “cadê ela, cadê Laura, o meu amor cadela”.