Ela era uma mulher esbaforida, sempre atrapalhada com os seus múltiplos afazeres, pois para ela, o bom mesmo era fazer mil coisas ao mesmo tempo, desde que meninozinho, seu gato de estimação, se atirou pela janela e levou com ele o seu último namorado, que na tentativa de segurar o gato pelo rabo, também escorregou pela janela, oito andares abaixo, bem diante do seu nariz, na sala do seu apartamento, como se tivessem combinado os dois, agora! um, dois, tres, já! Desde então, ela decidiu pensar e fazer mil coisas ao mesmo tempo, para se esquecer do tempo e daquele dia em que ela se viu privada de seus dois grandes amores para sempre, meninozinho e o seu último namorado.
Lá se vão doze para treze anos que ela se via nessa constante agitação diária. Se tinha que passar a roupa, o fazia já pensando na hora que teria que ir para o curso de corte e costura e no telefonema que teria que dar para a mãe para lembrar-lhe de não esquecer de tomar os remédios. Ao mesmo tempo preparava o almoço pensando no que iria comer à noite e na manhã seguinte, no café da manhã. Se ia ao banheiro usar o vaso, já aproveitava para escovar os dentes e comia vendo televisão, trabalhando no computador e fazendo as unhas, tudo ao mesmo tempo. Se ia à caça, partia pronta, armas em punho, vestida para matar, ou para se safar, a sua bolsa estava sempre cheia, camisinhas com espermicida, spray de pimenta, tesourinha de unha e outra cirúrgica, que roubara da casa da irmã médica há anos e que cortava tudo com mais facilidade, pois era cirúrgica afinal, um rolo de papel higiênico, uma calcinha reserva, boné, toalha de praia, uma meia peruca ruiva, para o caso de precisar disfarçar a identidade, e uma fantasia de baiana, que era a sua fantasia favorita, dar pro primeiro que aparecesse, vestida de baiana do acarajé, de modo que quando ela saia pra caçar, levava o tabuleiro inteiro.
Nunca se sabe o vem pela frente, pensava ela entre os seus mil e um pensamentos diários. Ela não tinha mais família, lhe restou apenas uma mãe doente e meio surda,que tomava remédios para controlar a pressão, o colesterol, a tireóide, a diabetes, a puta que pariu. Ela fazia questão de controlar os horários de toda essa farmácia ambulante, que a pobre mãe viúva carregava vida a fora e sabia de cor e salteado, a posologia de cada um deles. Antes de se deitar ela ligava pra mãe, que morava no apartamento ao lado e passava a limpo todo aquele arsenal.
- Mamãe, a senhora tomou as pílulas das quinze horas hoje? e as das 22 mamãe? lembre-se de que as das 23:30 a senhora tem que tomar com leite, pra não atacar a úlcera ouviu bem?
Amanhã... bem, amanhã tudo de novo, lavar, passar, escovar, limpar, corte e costura, cozinhar, computar, telefonar pra aqui, pra ali, pra acolá, ver todos os filmes da tv, dez minutos de cada um e sempre com o rádio ligado ou com o cd no repeat, tocando a mesma música, sem esquecer de dar uma passadinha por todos os programas de fofoca da tarde, tudo ao mesmo tempo e agora e ainda se desse, arrumava um tempinho pra ver se encontrava alguém que quisesse comer o seu acarajé. Fazia tempos que ela não dava pra ninguém vestida de baiana, a última vez foi pra um motorista de taxi que ela pegou na Praça da Sé e levou o sujeito lá pros lados da Ribeira e ali mesmo, dentro do taxi, ela trocou de roupa e deu como uma desesperada, toda paramentada, com seus colares, pulseiras e balangandãs, pra aquele taxista gordo, cheirando a alho. Ela já tinha dado pro porteiro na escada do prédio, pro carteiro, pro entregador de água, mas tudo rápido sem conversa, sem fantasia de baiana, que é quando ela se sentia poderosa, por cima de todas aquelas saias rodadas, metida naquele turbante ordinário e amarelecido pelo tempo. Era assim que ela gostava de dar, vestida de baiana.
Nunca se sabe o que vem pela frente. Ela, que perdera a única irmã vítima de bala perdida, que viu o seu gato de estimação e o seu último namorado sumirem janela abaixo, no mesmo dia, hora e local, ela que só tinha uma mãe surda e medicamentosa, ela que estava aposentada há quatro anos, mas que vivia ocupada com mil e um afazeres, pensando em mil coisas ao mesmo tempo, ela que pensava em tudo, jamais poderia imaginar que naquela manhã de domingo fosse dar de cara com o amor da sua vida. Logo naquela manhã, quando ela estava desprevenida, sem spray, sem camisinha, sem fantasia de baiana, justo naquela manhã e daquela maneira, ela deu de cara com Altair.
Logo que acordou, com o primeiro cocorocó das galinhas, ela saiu para comprar pão e leite na padaria da esquina, jogo rápido, pois teria que voltar imediatamente, para ligar pra mamãe, lembra-lhe dos remédios, botar a água do café pra ferver, ligar o rádio, o som, a tv, o computador, etc, etc, portanto não podia demorar. Foi quando ela tropeçou em Altair, um rapaz forte, moreno alto, de voz aveludada, na fila do caixa da padaria, enquanto ela pensava em mil coisas. Altair se aproximou e disse quase ao pé do ouvido dela:
- A senhora se esqueceu de amarrar o tênis, pode tropeçar e cair se não tomar cuidado.
Em seguida, antes que ela lhe agradecesse, que lhe dissesse que estava pensando em mil coisas, que estava com pressa e nem reparara em amarrar o tênis, Altair se abaixou e o fez, de forma delicada e firme, depois a convidou para dar uma volta na praia com ele, para aproveitar o sol da manhã e em seguida, sem dar tempo para ela responder, Altair se ofereceu para segurar as bolsas com o pão e o leite que ela acabara de comprar. Eram seis e trinta de uma manhã de domingo começando a ensolarar, a cidade sequer despertara do seu sono de sábado e estava praticamente deserta, quando ela e Altair atravessaram a avenida da praia, olhos nos olhos, hipnotizados por aquele encontro inesperado, ela pensando em mil coisas ao mesmo tempo, ele atento àquele par de tenis que acabara de amarrar, os dois entrelaçados por seus pensamentos, não perceberam um caminhão de entregas que entrou pela avenida desgovernado, na contramão, em alta velocidade, e levou ela e Altair para o andar de cima, numa manhã de domingo que estava apenas começando. Nunca se sabe o que vem pela frente.